segunda-feira, 25 de novembro de 2013

The act of killing (2012), de Joshua Oppenheimer

“É um bom filme familiar. Com muito humor. Uma grande história. Uma paisagem maravilhosa. Mostra o melhor do nosso país, apesar de ser um filme sobre a morte.” (Anwar Congo)


A citação de Anwar Congo acima parece uma boa reflexão sobre este documentário ou pelo menos sobre o que esse protagonista imaginava que seria o filme. “The act of killing” é um documentário de Joshua Oppenheimer, estreado em 2012. O filme fala sobre o assassinato de mais de um milhão de “comunistas” na Indonésia, por paramilitares e gângsteres, durante a ditadura militar, nos anos 60. O doc se desenvolve a partir do ponto de vista de seus executores, tendo como personagem principal Anwar Congo, gângster e executor em 1965. 50 anos depois, os protagonistas desse genocídio permanecem não só impunes, mas celebrados e ainda em posição de poder no país.

“The act of killing” abre com uma imagem de mulheres saindo de um enorme peixe numa paisagem surpreendente na Indonésia. Ouvimos uma pessoa falando em um megafone em seu idioma local, pedindo para as mulheres, Anwar Congo e outro executor, sorrirem “naturalmente”. Ele fala: “beleza natural! Isto não é uma farsa! Vamos, paz! Paz! Paz!” As pessoas estão “dançando”. A imagem remete a um tipo de paraíso machista: dois homens e lindas mulheres num lugar típico de cinema, em frente a uma cachoeira gigante que parece ter o poder de lavar a alma de qualquer criminoso. Seria o céu?

A imagem corta e vemos pessoas da equipe de gravação. O que este diretor quer nos passar com esta primeira sequência? Está claro! Esse é um filme de making of e o que vai nos interessar ao longo do documentário estará nos bastidores. Será que era sobre este filme que Anwar Congo comentava?

E então, o documentário realmente começa. Entram letterings contextualizando os fatos, assim como o documentário “S21”, de Rithy Pahn. Em 1965, o governo Indonésio foi deposto pelos militares, qualquer opositor à ditadura poderia ser acusado de comunista: sindicalistas, camponeses, intelectuais e imigrantes chineses. Em menos de um ano com ajuda dos governos ocidentais mais de um milhão de “comunistas” foram assassinados. E quem os matou? O exército usou paramilitares e gângsteres para o trabalho sujo.
Em seguida os letterings assumem uma “voz” do diretor explicando o dispositivo: cita que quando conheceram os assassinos, eles contaram com orgulho seus crimes, “para entendê-los, pedimos que recriassem as cenas das matanças, da maneira que eles quisessem.” Sim, da forma como eles quisessem, e eles parecem ter gostado muito da ideia. Foram fundo nos seus papéis, reconstituíram cenas brutais ao longo do documentário. Mas a quem Joshua pretendia enganar? É preciso simular momentos criminosos horríveis para entender o que foi essa ditadura? Em que momento isso ficou claro para os protagonistas?
Na realidade este dispositivo parece estar mais relacionado ao que conhecemos bem hoje em dia como sensacionalismoSensacionalismo é o nome que se dá para uma certa postura na comunicação em massa, em que os eventos e assuntos das histórias são exibidos de maneiras muito exageradas, para aumentar a audiência dos telespectadores ou dos leitores”, segundo Gabriella Porto, em artigo publicado (http://www.infoescola.com/jornalismo/sensacionalismo/).
“The act of killing” é um filme que não teria a receptividade que teve se fosse realizado em outra época. Delton Unglaub (http://www.canaldaimprensa.com.br/canalant/debate/tercedição/debate6.htm)
cita em um artigo: “pode-se dizer que os mass media são os principais responsáveis pelas transformações sociais da atualidade. (...) a imprensa em geral atua cada vez mais com a ideia de "o que é bom é aquilo que o público gosta". A partir do momento em que os produtos da mídia são consumidos, se tornam mercadorias. É na guerra em busca de audiência, que as regras da ética e moral são esquecidas”.
Seguindo com a análise da proposta estética sensacionalista do filme,  a primeira simulação é feita de maneira bruta. Herman Koto, líder paramilitar, também executor em 1965, tenta coagir mulheres em um bairro para fazerem o papel de uma mãe comunista que deve interpretar desespero ao queimarem sua casa. As pessoas sentem medo, não querem participar, até que uma mulher aceita e a cena é muito agressiva. O protagonista revive todo seu autoritarismo e parece desfrutar desse momento.

Anwar Congo (camisa verde), simula execução com uso de arame
Em 8 minutos de filme, Anwar Congo faz sua primeira reconstituição. Ele entra numa espécie de terraço superior onde matavam as pessoas. Lá explica como faziam e que, para não sujarem muito de sangue, eles inventaram uma técnica de enforcamento com o uso de um arame. Depois de simularem, ele conta que se drogava para esquecer e começa a dançar, em alusão à sua época nos bailes. Esse é um momento brutal, onde vemos um assassino se divertir depois de demonstrar uma situação tão triste e vergonhosa. Muito diferente dos personagens em “S21” e em “Queridísimos Verdugos”, de Patino, que apesar de executores e de também simularem em documentários os assassinatos que cometeram, não parecem sentir qualquer orgulho do que fizeram.
Chega um momento em que Anwar assume pela primeira vez que tem pesadelos pelos crimes que cometeu. Depois vão a um jornal onde interrogavam e em seguida matavam os “comunistas”. O editor do jornal diz que ele mesmo mudava as respostas dos interrogados para que parecessem maus e depois mandava executá-los. Ele explica que o Exército não sujava sua reputação, tinha as pessoas para realizarem as execuções. “Como Anwar tinham dezenas”, afirma.
O documentário muda constantemente de ações, situações e lugares. A montagem tem um ritmo intenso, clipado. Não temos tempo para refletir, parece um formato televisivo, produzido milimetricamente para segurar a audiência. Ficamos surpresos e envolvidos com os absurdos na medida em que vão sendo mostrados com tanta naturalidade. É uma coisa bizarra, sem explicação, surrealista.“O cinema e o surrealismo nunca funcionaram muito bem juntos, mas no filme do Joshua funciona”, comenta Werner Herzog em uma entrevista.


A produção executiva de “The act of killing” gerou polêmica, Eduardo Escorel em crítica publicada na revista Piauí (http://revistapiaui.estadao.com.br/blogs/questoes-cinematograficas/geral/the-act-of-killing-espectadores-violentados) comenta não entender a participação dos famosos Werner Herzog e Errol Morris. Ele argumenta sobre o fato de “The act of killing” ser ficção ou documentário. “Todo o filme é encenado, variando apenas o grau de delírio”, comenta. No final da sua crítica, chama o diretor americano de manipulador. Pensando por esse ângulo, Herzog é tão manipulador quanto em seus “documentários” em primeira pessoa (risos!).
Um momento interessante da crítica de Escorel é quando ele diz que: “o que falta a The Act of Killing, entre outras coisas, é esclarecer os termos do acordo feito entre o diretor e os personagens”. Eu estou totalmente de acordo com essa afirmação. Em vários momentos nos questionamos sobre isso durante o filme e nesse sentido entendemos perfeitamente o que ele quis dizer com “manipulador”. Joshua explora a imagem desses executores, faz do horror um espetáculo.
“A Sociedade do Espetáculo” é o trabalho mais conhecido de Guy Debord.(...) O ponto central de sua teoria é que a alienação é mais do que uma descrição de emoções ou um aspecto psicológico individual. É a conseqüência do modo capitalista de organização social que assume novas formas e conteúdos em seu processo dialética de separação e reificação da vida humana. Como uma constituição moderna da luta de classes, o espetáculo é uma forma de dominação da burguesia sobre o proletariado e do espetáculo, sua lógica e sua história, sobre todos os membros da sociedade”.
Seguindo com a análise, em cerca de 27 minutos o diretor enfim resolve se posicionar mais ativamente, mostra aos protagonistas a cena em que Anwar Congo conta como matava as pessoas com a ajuda de um arame. Uma criança está na sala, todos assistem ao vídeo com os rostos franzidos, sérios. Anwar se pronuncia: “nunca teria usado calças brancas(...) pareço vestido para um picnic.” E conclui: “Olha, estou rindo. Eu fiz errado, não fiz?” Os outros que também assistiam, não ousam discordar. O uso da metalinguagem nesse filme é muito bem aplicado. Esse espelho mostrado começa a provocar mudanças nas reflexões de Anwar, vamos vendo isso no desenrolar do filme.
Em 33´, entra o tema dos chineses e Anwar assume que na verdade só queriam o dinheiro deles, que se eles não dessem, eles os matavam. Alguns paramilitares vão a uma zona de comércio e começam a pedir dinheiro aos chineses que de forma humilhante o entregam. Uma situação absolutamente criminal que se mantém até os dias de hoje. E então, como se já não fosse pouco tudo que vimos, corta para uma cena do vice-presidente da Indonésia usando uma roupa de paramilitar numa solenidade. Assim vamos entendendo porquê tratam o assunto e agem com tanta naturalidade, porque seguem no poder. E o vice-presidente fala: “esta nação precisa de homens livres - gângsteres (...) para que as coisas sejam feitas.”
Em quase 40 minutos, o que já parecia uma eternidade depois de tanto conteúdo, aparece um companheiro executor e polêmico, Adi Zulkadry.
Anwar no meio sorrindo e relembrando crimes, Adi à direita.
Eles fazem um pequeno "tour do terror". De dentro do carro, Anwar segue mostrando e relembrando a Adi dos lugares onde praticavam os assassinatos. Depois corta para um momento de maquiagem em que vão encenar e o diretor pergunta a opinião deles sobre os filmes publicitários anti-comunistas. Anwar revela que é a única coisa que o fazia sentir-se inocente. Adi discorda, diz que tudo era uma grande mentira.

E Adi segue provocando, discordando, cutucando a ferida. A chegada dele muda o ponto de vista. De heróis, passam a mentirosos e cruéis assassinos da ditadura.
Em 47´, Anwar se pergunta se as vítimas os amaldiçoam secretamente... E assume que sofre e que não dorme pensando nos crimes, esse também é um tema recorrente no documentário “S21”. E Adi se posiciona racionalmente, fala que Anwar tem mente fraca, que deveria procurar um psiquiatra. Como aquele aforismo de Carlos Drummond de Andrade: "Seria cômico, se não fosse trágico."
Passando da primeira hora de filme Adi reflete: “se conseguirmos, este filme refutará toda propaganda de que os comunistas são cruéis. E mostrará que nós éramos os cruéis (...) Pensemos em cada passo que demos. Não é medo. Porque se passaram 40 anos e os crimes já prescreveram. Não é medo. É imagem (...) Não é problema nosso, mas da história”. Depois de Adi escancarar as portas para que saiam os fantasmas, o diretor enfim se posiciona mais diretamente e começa a questioná-lo se ele fosse parar na Convenção de Genebra, no Tribunal de Haia, acusado de crime de guerra o que ele acharia. Adi responde: “eu iria. Não em sinto culpado, e por que iria? Porque ficaria famoso. Eu estou preparado. Por favor, me chamem para Haia.”
Senhora grávida (ao centro) passando mal após simulação
Em quase duas horas, uma nova simulação, desta vez de um massacre, teve consequências reais. Os paramilitares viveram um momento de catarse, soltaram toda a agressividade, reviveram a brutalidade do passado. No final da cena, crianças chorando, mulheres passando mal. Herman reprime o choro desconsolado da sua filha, diz: “febby você atuou legal, mas pare de chorar. Você me envergonha. As estrelas de cinema só choram um pouco.” Anwar reflete: “os meus amigos me dizem que atuei com mais sadismo (...) Isto foi muito, muito...”

O diretor Joshua Oppenheimer
Anwar Congo é como o diretor disfarçado desse filme. É ético ou melhor dizendo, é justo o que Joshua faz com esse homem? Os executores nesse documentário seguem fazendo o que sempre souberem fazer “bem”: o trabalho sujo. Joshua se esconde atrás de Anwar, deixa que todo absurdo sensacionalizado pareça ideia da cabeça dele. E Anwar retroalimenta esse papel, se preocupa com o filme, diz que ele precisa chamar atenção, entreter, diz que sadismo e tortura chamam a atenção do público, acredita que podem fazer sucesso com o filme. “Humor... É imprescindível. Mulheres bonitas? Nós temos. Porque se o público está tenso o tempo todo, sem nada que o entretenha, não vai funcionar”. A montagem de Joshua vai respeitando esse raciocínio. Quando uma sequência fica muito pesada, ele rapidamente muda para outra, não dá tempo para o público se entediar...
O doc segue com várias outras simulações. Reviver essas cenas não poderia deixar de mexer realmente com a cabeça desses assassinos. Em 2h18´, após simular que estava sendo torturado e depois assassinado, Anwar exausto diz: "eu senti que estava morto, por um momento (...) não posso fazer isso de novo.” Anwar decide mostrar para os netos a cena em que estava sendo espancado, mesmo depois do diretor Joshua tentar alertá-lo de que é muito violento. E diz: “consigo sentir o que as pessoas que eu torturava sentiam. Porque aqui minha dignidade foi destruída...” E Joshua complementa: “as pessoas que vc torturava se sentiam muito pior.” Ufa, enfim uma manifestação mais ousada do diretor... E então, ele faz o gângster destemido chorar e dizer que pecou.
Estaria Joshua fazendo um grande favor a Anwar Congo fazendo este filme e distribuindo sua confissão para o mundo? Ou esse diretor apenas usou esses executores como marionetes do seu espetáculo? De qualquer maneira, o protagonista poderia estar se sentindo mais leve agora depois desses desabafos. Esse é um momento perturbador do documentário que vai crescentemente mostrando Anwar Congo mais consciente e sofrido, diferente do começo que se sentia herói e orgulhoso. Seria isso o que chamam a força transformadora do cinema? Nessa hora, depois de duas horas e meia de filme nos sentimos os torturados da vez. O que mais pode acontecer? O final parece longo e sem fim. Por sua vez, Herman Koto, o outro protagonista, vivencia um momento digno de uma sessão de bioenérgetica e grita enfurecidamente enquanto toca uma bateria.
O resultado, segundo Filipe Furtado em seu blog “Anotações de um cinéfilo” (http://anotacoescinefilo.com/2013/07/17/the-act-of-killing-joshua-oppenheimer2012/) “é um filme sobre a violência da linguagem, linguagem da história, mas também a linguagem do cinema (…) Oppenheimer encontra no seu cenário de banalidade do mal, um material realmente perturbador sobre como a linguagem retrata a história (e assassinato legalizado, em particular) e o lugar do cinema – e mídia em geral – como intermediários dele que é ao mesmo tempo muito especifico e expansivo de maneira aterradora”.
Além das críticas de todos os lados sobre a falta de ética e a banalização da violência em “The act of killing”, estou de acordo com o produtor Errol Morris quando diz que: “seja documentário lá o que for, não é educação para adultos. Supõe-se que seja uma forma de arte em que tentamos comunicar alguma coisa sobre o mundo real.” E nesse sentindo o doc de Joshua tem mérito, é um filme poderoso. “O filme tem um âmbito e um calibre tão enormes que seria danoso se só enxergássemos a questão política nele. E é muito, muito, muito mais. A forma da narrativa, os silêncios, a música… O fazer do filme… O fazer do filme é excelente.” No fim das contas se deixarmos de lado todos os questionamentos, se é real ou não, se é ético ou não e pararmos para pensar apenas na experiência do cinema, temos em The act of killing “um momento incrível”, conclui Morris.


quarta-feira, 20 de novembro de 2013

S21 (2003), de Rithy Pahn



Por ordem cronológica, o segundo documentário que irei trabalhar, possivelmente, na minha tese é “S21, A Máquina de Morte do Khmer Vermelho” (2003), de Rithy Pahn. Sob o regime totalitário do Khmer Vermelho, entre 1974 e 1979, milhares de pessoas foram aprisionadas, torturadas e executadas no centro de detenção S21, no Camboja. Foram necessários mais de dois anos de investigação para o diretor encontrar os raros sobreviventes e então convencê-los a se confrontarem no antigo S21, convertido em museu do genocídio.


A primeira coisa que me interessa refletir sobre o doc S21 é a motivação do diretor. O cinema de uma forma geral, possui grande parte dos seus melhores diretores envolvidos com um tema em particular e isso é o que geralmente move suas realizações artísticas, arte é expressão. No caso do documentário, vemos isso claramente em diversos diretores como Naomi Kawase, Johan Van der Keuken, Claude Lanzmann, entre outros. Eles fazem dos seus filmes verdadeiras buscar por respostas em suas vidas.

Com Rithy Pahn não foi diferente. Nasceu no Camboja, em 1964. Ele foi levado para um campo de trabalhos forçados pelo Khmer Vermelho aos 15 anos, mas conseguiu fugir e buscou asilo na França, onde estudou cinema no IDHEC, iniciando então uma carreira como documentarista trabalhando temas sobre o Camboja, tendo S21 como uma de sua sobras mais importantes.
A direção de fotografia, sobretudo os movimentos de câmera de S21  são impressionantes. Desde o princípio já imaginamos que uma dessas câmeras estava sendo operada pelo diretor e de fato foi. Rithy Pahn desliza muito suavemente do personagem que fala para os documentos, para as imagens dos quadros, de um personagem para o outro e alcança belos planos sequência.
Como diretor, Pahn sabe os pontos de corte que lhe interessam nos depoimentos e sempre sai do personagem para uma imagem ilustrativa quando o mesmo parece concluir algo importante. Essa é uma diferença gritante com relação ao trabalho de Patino, em “Queridísimos Verdugos”. O diretor espanhol, por exemplo, trabalha com planos fixos e as imagens são usadas como inserts para cobrir os cortes nos depoimentos. Em S21 tudo parece mais fluido.
Partindo para a análise de S21, o documentário começa com letterings sobre a guerra e o golpe de estado de Khmer Rouge que devastaram o Camboja entre 1975 e 1979. Vemos vídeos antigos e depois chegamos ao presente passando de uma imagem antiga de cambojanos trabalhando na lavoura para uma imagem atual, essa sim captada por Rithy Pahn, com cambojanos numa plantação. A intenção do diretor é simples e direta, contextualizar o espectador da história desse povo e mostrar como a vida segue nos dias de hoje e assim segue o documentário.
O doc começa mesmo na casa de um ex-funcionário do Regime de Rouge. Em 5´ de duração, sua família começa a contar que ele não teve culpa dos crimes e falam em rezar para afastar o karma ruim. O ex-torturador se mostra desconfortável em falar do assunto, envergonhado, diz que não dorme, não come... Interessante que isso também acontece com um dos personagens em “The act of killing”, mas depois trabalharemos este outro documentário. Abrir S21 dessa forma nos leva a refletir, logo a princípio, que não existem culpados nessa triste história, são todos vítimas, mesmo os torturadores.
Então o filme se torna um pouco mais lúdico, num belo plano sequência em que vemos uma pintura de cambojanos presos sendo conduzidos ao S21 realizada por um sobrevivente enquanto ele mesmo descreve o sofrimento que passou quando foi detido e encaminhado para a casa de detenção. Ele conta que só não morreu porque os líderes dali gostavam da sua arte.
Em seguida vemos outro sobrevivente diante do prédio S21 a chorar recordando os fatos. Então os dois entram e começam a ver um livro com as declarações dos torturados. O diretor segue sem intervir, parece neutro em meio a tanta dor, deixa que os personagens dialoguem e conduzam a conversa e o conteúdo. O sobrevivente pintor começa a questionar o outro sobrevivente por ter delatado cerca de 60 pessoas depois de ter sido violentamente torturado.
A tensão do confronto começa a ganhar força no documentário. Se cria uma situação que não poderíamos imaginar: um sobrevivente que acaba de chorar por ter perdido sua família é questionado diretamente por outro sobre o por quê de entregar tantas pessoas: “E se vc tivesse entregado 4 ou 5 nomes?”, pergunta. “Isto não funcionava”, responde o outro constrangido. Mais uma vez o filme pergunta: existe culpado e vítima nessa história? E segue perguntando até o fim...
Em 17´, a “vítima também culpada” diz que lembra das pessoas que entregou e pede aos deuses que não o castigue com um mal karma. Por um segundo quando ele falou que pedia aos deuses, pensei que ele iria dizer que pedia aos deuses para que não tivessem sofrido tanto e que estivessem em paz, mas isso é um pensamento religioso demais, não? O sobrevivente pede para não ter um mal karma!!!
A situação é tão extrema que mesmo sobrevivendo essas pessoas seguem sofrendo de medo, arrependimento, saudade... Chegamos a pensar que quem morreu está melhor do que quem está vivo... Lá vem minha mente cristã atuando outra vez... E o pintor conclui de maneira muito coerente dizendo se cada pessoa denunciasse cerca de 50 pessoas, em um ou dois anos todos os habitantes do Camboja seriam inimigos e consequentemente, mortos.

Em 25´ aparecem os antigos torturadores que trabalharam em S21 e o doc muda o ponto de vista. O pintor se encontra com eles e pergunta: “(vcs) se consideram vítimas?” E um dos personagens timidamente responde: “somos todos vítimas, sem exceção.” Nesse momento percebemos mais claramente que o pintor está substituindo o papel do diretor, assumindo a condução das conversas e provocando realmente os assuntos. Sentimos isso pois esse encontro soa artificial, todos estão aí um tanto constrangidos, olham para câmera, se perde um pouco a naturalidade. Entretanto o sobrevivente pintor de fato agarrou essa oportunidade com unhas e dentes e parece ter colocado para fora uma vontade antiga de fazer essas perguntas. Rithy Pahn agradece.
E a coisa se põe mais interessante. Os torturadores se defendem, dizem que eram ameaçados de morte e o pintor começa a contar, através de uma de suas obras, a tortura em que viviam e que eram mal-tratados, violentados, que não comiam. E pergunta: “Por que tanta selvageria?” Ou seja, esses torturadores se justificam mas por que incorporavam tão vorazmente seus papéis e agiam dessa maneira?

Em 35´, vemos a primeira simulação, de como recolhiam um detento para tortura. Eles simulam e estão sempre lendo as orientações que tinham escritas em documentos. Essa estratégia de ler os escritos traz veracidade às cenas, eles não estão contando como era de acordo com o que lembram ou pensam, estão lendo, o que outra vez mostra que não tinham muito poder de modificar as coisas, tudo estava sob muita orientação e controle. O doc se desenrola de forma muito envolvente, somos mais uma vez, assim como nos sentimos em “Queridísimos Verdugos”, de Patino, os juízes dessa história.

Então assistimos o primeiro torturador a confessar que realmente era arrogante e que desfrutava do poder que tinha sobre o “inimigo”, que não refletia. E assume, depois que tinham as confissões, matavam todos. Esse é um momento interessante. Será que a experiência de participar do documentário fez estes personagens refletirem mais sobre suas vidas e de repente mudarem de opinião sobre si mesmos? Isso vemos acontecer claramente em “The act of Killing.”
Enfim, a primeira sensação que tenho quando vejo diretores de documentários levarem de volta ao local da fatalidade sobreviventes de qualquer situação, assim como aconteceu em S21, me pergunto: que espécie de sádico é esse diretor? Mas entendemos ao longo do filme, a importância de documentar e fazer essas histórias serem vistas e eternizadas. Os personagens acabam vivenciando um processo diria até terapêutico quando revivem os momentos sofridos e acabam por enterrá-los ali, durante as gravações. Assim esperamos.

sábado, 16 de novembro de 2013

Queridisimos Verdugos (1977), de Patino


Depois de um período pouco motivador nas aulas, volto com “Queridisimos verdugos”, um documentário espanhol, escrito e dirigido por Basilio Martín Patino, entre 1971 y 1973. O diretor teve que esperar a morte do ditador Franco e o término da pena de morte na Espanha para seu lançamento em 1977.

Este filme faz parte de uma trilogia de documentários que escolhi trabalhar para minha tese do Mestrado de Cinema, pois compartilham um conteúdo comum: a execução humana. Os outros dois filmes sobre os quais falarei depois são: “The act of killing", de Joshua Oppenheimer e “S21”, de Rithy Panh. Esta escolha não foi feita porque me interessa esse assunto, mas pelo interessante que é ver três diretores abordando um tema tão difícil de maneira tão diferente e como isso também é recebido de forma distinta pelo público. Os três documentários se desenvolvem a partir do ponto de vista dos executores, mas naturalmente sabemos que por traz existe um diretor decidindo tudo e que, em geral, sabe bem o que quer.

No documentário de Patino seus protagonistas são três  “verdugos”, em português “carrascos” ou, se utilizamos o termo oficial, “agentes executores de sentenças”: Antonio López Sierra, Vicente López Copete e Bernardo Sánchez Bascuñana.
“Queridisimos verdugos” começa com uma trilha religiosa e imagens de cobertura que ilustram o que o primeiro personagem conta sobre sua vida. A música cristã remete ao tema do pecado e nos leva a imaginar que os personagens que se apresentam estão envolvidos em algo que clama por perdão.
Nos primeiros 5 minutos, fica claro que o diretor irá trabalhar um estilo clássico de documentário, estruturado por entrevistas, imagens de cobertura, trilha e vozes em off que trazem algumas explicações históricas e fazem as conexões entre uma sequência e outra.
Uma coisa interessante dessa abertura é que o diretor opta por começar o filme apresentando a história desse primeiro personagem. Ele conta um pouco de como veio a se tornar um executor de sentença, uma tentativa talvez de fazer o espectador entender que esses funcionários da justiça não escolhiam por vontade própria seguir esta profissão, mas que as condições precárias de vida na época da ditadura franquista na Espanha os colocavam sem muita opção e como executores teriam ao menos o que comer e como sustentar suas famílias. Abrir o documentário dessa forma também já deixa claro que o filme será baseado no que contam seus personagens, sob o ponto de vista deles e que o diretor aparentemente, pouco intervirá. 
O filme segue e o segundo carrasco se apresenta, também conta um pouco de sua história e vemos mais fotos e ilustrações antigas como cobertura. Na apresentação do terceiro a trilha fica ainda um pouco mais fúnebre, com o tema do “Fantasma da ópera” tocado por aqueles órgãos enormes de igrejas antigas, típicos da liturgia cristã. O clima fica tenso.
Depois dos “verdugos” se apresentarem como cidadãos de bem que cumprem ordens e de se afirmarem como bons cristãos, o diretor usa como sobe som uma música cigana em que a letra chama um dos executores de assassino frio que mata sem pesar e que depois ainda fuma tranquilamente seu cigarro. Esse sobesom foi uma forma encontrada pelo diretor para apresentar o ponto de vista dos moradores da região sobre o tal agente de sentença e seu “dever”. Em seguida eles começam a relembrar os casos e locais onde aconteceram algumas execuções.
Aos 19 minutos de filme entra uma voz em off sobre o estrangulamento e suas técnicas e, em seguida, dois dos carrascos simulam como funcionava o aparato mais usado na Espanha, o garrote vil. O terceiro carrasco, este parece ser o que mais se afeta emocionalmente com as execuções, complementa que é um método que proporciona uma morte rápida e pouco sofrida. De fato não parece existir sadismo nos carrascos quando eles falam sobre suas técnicas, mas existe uma naturalidade assustadora ao tratar o assunto. Um dos verdugos fala que é como matar um cordeiro num matadouro, pois ele não sabe nada sobre o reú e tampouco o preso nunca teria feito nada contra ele.
Em 35 minutos o diretor começa a apresentar outros pontos de vista: um especialista, um advogado e um psiquiatra, assim como um geneticista que cita que alguns criminosos possuem um cromossomo a mais. 
Qual seria a intenção do diretor ao introduzir estas sequências? Gerar reflexão sobre a possibilidade de alguns réus não serem culpados por seus crimes por poderem apresentar uma anomalia genética? Isso os deveria livrar da execução? O filme segue com os executores contando os crimes horríveis cometidos pelos presos que eles executaram. Seria uma tentativa de justificar a execução e seus respectivos ofícios? O documentário acaba gerando uma reflexão profunda sobre a pena de morte e suas consequências sociais.
Chega um momento em que são contados uma série de crimes contra meninas e crianças, barbaridades. Naturalmente isso provoca no espectador uma indignação em relação aos criminosos e nos coloca de certa forma do mesmo lado dos verdugos. Ao mesmo tempo, em vários momentos os executores relatam que os réus pedem piedade e eles comentam que estão apenas cumprindo ordens. O documentário vai construindo uma constelação de argumentos em que nós, espectadores, nos sentimos os verdadeiros juízes.

Nos momentos em que os verdugos estão contando os episódios, eles estão sempre sentados bebendo, fumando e também comendo, como quem conversa sobre uma partida de futebol ou uma notícia do jornal. Essa estratégia de deixá-los à vontade conversando e até bêbados, neutraliza a posição do diretor que não parece intervir nem provocar os temas, o que com certeza aconteceu mas que depois foi editado e escondido através das imagens de cobertura que muitas vezes aparecem apenas para cobrir um corte sem agregar muita informação.
Enfim, “Queridisimos verdugos” é um documento real sobre uma época triste da Espanha que merece reflexão e o filme conduz isso muito bem. Apesar da falta de legenda em outros idiomas e do sotaque espanhol puxado, vale o esforço. Assistam e comentem!