segunda-feira, 25 de novembro de 2013

The act of killing (2012), de Joshua Oppenheimer

“É um bom filme familiar. Com muito humor. Uma grande história. Uma paisagem maravilhosa. Mostra o melhor do nosso país, apesar de ser um filme sobre a morte.” (Anwar Congo)


A citação de Anwar Congo acima parece uma boa reflexão sobre este documentário ou pelo menos sobre o que esse protagonista imaginava que seria o filme. “The act of killing” é um documentário de Joshua Oppenheimer, estreado em 2012. O filme fala sobre o assassinato de mais de um milhão de “comunistas” na Indonésia, por paramilitares e gângsteres, durante a ditadura militar, nos anos 60. O doc se desenvolve a partir do ponto de vista de seus executores, tendo como personagem principal Anwar Congo, gângster e executor em 1965. 50 anos depois, os protagonistas desse genocídio permanecem não só impunes, mas celebrados e ainda em posição de poder no país.

“The act of killing” abre com uma imagem de mulheres saindo de um enorme peixe numa paisagem surpreendente na Indonésia. Ouvimos uma pessoa falando em um megafone em seu idioma local, pedindo para as mulheres, Anwar Congo e outro executor, sorrirem “naturalmente”. Ele fala: “beleza natural! Isto não é uma farsa! Vamos, paz! Paz! Paz!” As pessoas estão “dançando”. A imagem remete a um tipo de paraíso machista: dois homens e lindas mulheres num lugar típico de cinema, em frente a uma cachoeira gigante que parece ter o poder de lavar a alma de qualquer criminoso. Seria o céu?

A imagem corta e vemos pessoas da equipe de gravação. O que este diretor quer nos passar com esta primeira sequência? Está claro! Esse é um filme de making of e o que vai nos interessar ao longo do documentário estará nos bastidores. Será que era sobre este filme que Anwar Congo comentava?

E então, o documentário realmente começa. Entram letterings contextualizando os fatos, assim como o documentário “S21”, de Rithy Pahn. Em 1965, o governo Indonésio foi deposto pelos militares, qualquer opositor à ditadura poderia ser acusado de comunista: sindicalistas, camponeses, intelectuais e imigrantes chineses. Em menos de um ano com ajuda dos governos ocidentais mais de um milhão de “comunistas” foram assassinados. E quem os matou? O exército usou paramilitares e gângsteres para o trabalho sujo.
Em seguida os letterings assumem uma “voz” do diretor explicando o dispositivo: cita que quando conheceram os assassinos, eles contaram com orgulho seus crimes, “para entendê-los, pedimos que recriassem as cenas das matanças, da maneira que eles quisessem.” Sim, da forma como eles quisessem, e eles parecem ter gostado muito da ideia. Foram fundo nos seus papéis, reconstituíram cenas brutais ao longo do documentário. Mas a quem Joshua pretendia enganar? É preciso simular momentos criminosos horríveis para entender o que foi essa ditadura? Em que momento isso ficou claro para os protagonistas?
Na realidade este dispositivo parece estar mais relacionado ao que conhecemos bem hoje em dia como sensacionalismoSensacionalismo é o nome que se dá para uma certa postura na comunicação em massa, em que os eventos e assuntos das histórias são exibidos de maneiras muito exageradas, para aumentar a audiência dos telespectadores ou dos leitores”, segundo Gabriella Porto, em artigo publicado (http://www.infoescola.com/jornalismo/sensacionalismo/).
“The act of killing” é um filme que não teria a receptividade que teve se fosse realizado em outra época. Delton Unglaub (http://www.canaldaimprensa.com.br/canalant/debate/tercedição/debate6.htm)
cita em um artigo: “pode-se dizer que os mass media são os principais responsáveis pelas transformações sociais da atualidade. (...) a imprensa em geral atua cada vez mais com a ideia de "o que é bom é aquilo que o público gosta". A partir do momento em que os produtos da mídia são consumidos, se tornam mercadorias. É na guerra em busca de audiência, que as regras da ética e moral são esquecidas”.
Seguindo com a análise da proposta estética sensacionalista do filme,  a primeira simulação é feita de maneira bruta. Herman Koto, líder paramilitar, também executor em 1965, tenta coagir mulheres em um bairro para fazerem o papel de uma mãe comunista que deve interpretar desespero ao queimarem sua casa. As pessoas sentem medo, não querem participar, até que uma mulher aceita e a cena é muito agressiva. O protagonista revive todo seu autoritarismo e parece desfrutar desse momento.

Anwar Congo (camisa verde), simula execução com uso de arame
Em 8 minutos de filme, Anwar Congo faz sua primeira reconstituição. Ele entra numa espécie de terraço superior onde matavam as pessoas. Lá explica como faziam e que, para não sujarem muito de sangue, eles inventaram uma técnica de enforcamento com o uso de um arame. Depois de simularem, ele conta que se drogava para esquecer e começa a dançar, em alusão à sua época nos bailes. Esse é um momento brutal, onde vemos um assassino se divertir depois de demonstrar uma situação tão triste e vergonhosa. Muito diferente dos personagens em “S21” e em “Queridísimos Verdugos”, de Patino, que apesar de executores e de também simularem em documentários os assassinatos que cometeram, não parecem sentir qualquer orgulho do que fizeram.
Chega um momento em que Anwar assume pela primeira vez que tem pesadelos pelos crimes que cometeu. Depois vão a um jornal onde interrogavam e em seguida matavam os “comunistas”. O editor do jornal diz que ele mesmo mudava as respostas dos interrogados para que parecessem maus e depois mandava executá-los. Ele explica que o Exército não sujava sua reputação, tinha as pessoas para realizarem as execuções. “Como Anwar tinham dezenas”, afirma.
O documentário muda constantemente de ações, situações e lugares. A montagem tem um ritmo intenso, clipado. Não temos tempo para refletir, parece um formato televisivo, produzido milimetricamente para segurar a audiência. Ficamos surpresos e envolvidos com os absurdos na medida em que vão sendo mostrados com tanta naturalidade. É uma coisa bizarra, sem explicação, surrealista.“O cinema e o surrealismo nunca funcionaram muito bem juntos, mas no filme do Joshua funciona”, comenta Werner Herzog em uma entrevista.


A produção executiva de “The act of killing” gerou polêmica, Eduardo Escorel em crítica publicada na revista Piauí (http://revistapiaui.estadao.com.br/blogs/questoes-cinematograficas/geral/the-act-of-killing-espectadores-violentados) comenta não entender a participação dos famosos Werner Herzog e Errol Morris. Ele argumenta sobre o fato de “The act of killing” ser ficção ou documentário. “Todo o filme é encenado, variando apenas o grau de delírio”, comenta. No final da sua crítica, chama o diretor americano de manipulador. Pensando por esse ângulo, Herzog é tão manipulador quanto em seus “documentários” em primeira pessoa (risos!).
Um momento interessante da crítica de Escorel é quando ele diz que: “o que falta a The Act of Killing, entre outras coisas, é esclarecer os termos do acordo feito entre o diretor e os personagens”. Eu estou totalmente de acordo com essa afirmação. Em vários momentos nos questionamos sobre isso durante o filme e nesse sentido entendemos perfeitamente o que ele quis dizer com “manipulador”. Joshua explora a imagem desses executores, faz do horror um espetáculo.
“A Sociedade do Espetáculo” é o trabalho mais conhecido de Guy Debord.(...) O ponto central de sua teoria é que a alienação é mais do que uma descrição de emoções ou um aspecto psicológico individual. É a conseqüência do modo capitalista de organização social que assume novas formas e conteúdos em seu processo dialética de separação e reificação da vida humana. Como uma constituição moderna da luta de classes, o espetáculo é uma forma de dominação da burguesia sobre o proletariado e do espetáculo, sua lógica e sua história, sobre todos os membros da sociedade”.
Seguindo com a análise, em cerca de 27 minutos o diretor enfim resolve se posicionar mais ativamente, mostra aos protagonistas a cena em que Anwar Congo conta como matava as pessoas com a ajuda de um arame. Uma criança está na sala, todos assistem ao vídeo com os rostos franzidos, sérios. Anwar se pronuncia: “nunca teria usado calças brancas(...) pareço vestido para um picnic.” E conclui: “Olha, estou rindo. Eu fiz errado, não fiz?” Os outros que também assistiam, não ousam discordar. O uso da metalinguagem nesse filme é muito bem aplicado. Esse espelho mostrado começa a provocar mudanças nas reflexões de Anwar, vamos vendo isso no desenrolar do filme.
Em 33´, entra o tema dos chineses e Anwar assume que na verdade só queriam o dinheiro deles, que se eles não dessem, eles os matavam. Alguns paramilitares vão a uma zona de comércio e começam a pedir dinheiro aos chineses que de forma humilhante o entregam. Uma situação absolutamente criminal que se mantém até os dias de hoje. E então, como se já não fosse pouco tudo que vimos, corta para uma cena do vice-presidente da Indonésia usando uma roupa de paramilitar numa solenidade. Assim vamos entendendo porquê tratam o assunto e agem com tanta naturalidade, porque seguem no poder. E o vice-presidente fala: “esta nação precisa de homens livres - gângsteres (...) para que as coisas sejam feitas.”
Em quase 40 minutos, o que já parecia uma eternidade depois de tanto conteúdo, aparece um companheiro executor e polêmico, Adi Zulkadry.
Anwar no meio sorrindo e relembrando crimes, Adi à direita.
Eles fazem um pequeno "tour do terror". De dentro do carro, Anwar segue mostrando e relembrando a Adi dos lugares onde praticavam os assassinatos. Depois corta para um momento de maquiagem em que vão encenar e o diretor pergunta a opinião deles sobre os filmes publicitários anti-comunistas. Anwar revela que é a única coisa que o fazia sentir-se inocente. Adi discorda, diz que tudo era uma grande mentira.

E Adi segue provocando, discordando, cutucando a ferida. A chegada dele muda o ponto de vista. De heróis, passam a mentirosos e cruéis assassinos da ditadura.
Em 47´, Anwar se pergunta se as vítimas os amaldiçoam secretamente... E assume que sofre e que não dorme pensando nos crimes, esse também é um tema recorrente no documentário “S21”. E Adi se posiciona racionalmente, fala que Anwar tem mente fraca, que deveria procurar um psiquiatra. Como aquele aforismo de Carlos Drummond de Andrade: "Seria cômico, se não fosse trágico."
Passando da primeira hora de filme Adi reflete: “se conseguirmos, este filme refutará toda propaganda de que os comunistas são cruéis. E mostrará que nós éramos os cruéis (...) Pensemos em cada passo que demos. Não é medo. Porque se passaram 40 anos e os crimes já prescreveram. Não é medo. É imagem (...) Não é problema nosso, mas da história”. Depois de Adi escancarar as portas para que saiam os fantasmas, o diretor enfim se posiciona mais diretamente e começa a questioná-lo se ele fosse parar na Convenção de Genebra, no Tribunal de Haia, acusado de crime de guerra o que ele acharia. Adi responde: “eu iria. Não em sinto culpado, e por que iria? Porque ficaria famoso. Eu estou preparado. Por favor, me chamem para Haia.”
Senhora grávida (ao centro) passando mal após simulação
Em quase duas horas, uma nova simulação, desta vez de um massacre, teve consequências reais. Os paramilitares viveram um momento de catarse, soltaram toda a agressividade, reviveram a brutalidade do passado. No final da cena, crianças chorando, mulheres passando mal. Herman reprime o choro desconsolado da sua filha, diz: “febby você atuou legal, mas pare de chorar. Você me envergonha. As estrelas de cinema só choram um pouco.” Anwar reflete: “os meus amigos me dizem que atuei com mais sadismo (...) Isto foi muito, muito...”

O diretor Joshua Oppenheimer
Anwar Congo é como o diretor disfarçado desse filme. É ético ou melhor dizendo, é justo o que Joshua faz com esse homem? Os executores nesse documentário seguem fazendo o que sempre souberem fazer “bem”: o trabalho sujo. Joshua se esconde atrás de Anwar, deixa que todo absurdo sensacionalizado pareça ideia da cabeça dele. E Anwar retroalimenta esse papel, se preocupa com o filme, diz que ele precisa chamar atenção, entreter, diz que sadismo e tortura chamam a atenção do público, acredita que podem fazer sucesso com o filme. “Humor... É imprescindível. Mulheres bonitas? Nós temos. Porque se o público está tenso o tempo todo, sem nada que o entretenha, não vai funcionar”. A montagem de Joshua vai respeitando esse raciocínio. Quando uma sequência fica muito pesada, ele rapidamente muda para outra, não dá tempo para o público se entediar...
O doc segue com várias outras simulações. Reviver essas cenas não poderia deixar de mexer realmente com a cabeça desses assassinos. Em 2h18´, após simular que estava sendo torturado e depois assassinado, Anwar exausto diz: "eu senti que estava morto, por um momento (...) não posso fazer isso de novo.” Anwar decide mostrar para os netos a cena em que estava sendo espancado, mesmo depois do diretor Joshua tentar alertá-lo de que é muito violento. E diz: “consigo sentir o que as pessoas que eu torturava sentiam. Porque aqui minha dignidade foi destruída...” E Joshua complementa: “as pessoas que vc torturava se sentiam muito pior.” Ufa, enfim uma manifestação mais ousada do diretor... E então, ele faz o gângster destemido chorar e dizer que pecou.
Estaria Joshua fazendo um grande favor a Anwar Congo fazendo este filme e distribuindo sua confissão para o mundo? Ou esse diretor apenas usou esses executores como marionetes do seu espetáculo? De qualquer maneira, o protagonista poderia estar se sentindo mais leve agora depois desses desabafos. Esse é um momento perturbador do documentário que vai crescentemente mostrando Anwar Congo mais consciente e sofrido, diferente do começo que se sentia herói e orgulhoso. Seria isso o que chamam a força transformadora do cinema? Nessa hora, depois de duas horas e meia de filme nos sentimos os torturados da vez. O que mais pode acontecer? O final parece longo e sem fim. Por sua vez, Herman Koto, o outro protagonista, vivencia um momento digno de uma sessão de bioenérgetica e grita enfurecidamente enquanto toca uma bateria.
O resultado, segundo Filipe Furtado em seu blog “Anotações de um cinéfilo” (http://anotacoescinefilo.com/2013/07/17/the-act-of-killing-joshua-oppenheimer2012/) “é um filme sobre a violência da linguagem, linguagem da história, mas também a linguagem do cinema (…) Oppenheimer encontra no seu cenário de banalidade do mal, um material realmente perturbador sobre como a linguagem retrata a história (e assassinato legalizado, em particular) e o lugar do cinema – e mídia em geral – como intermediários dele que é ao mesmo tempo muito especifico e expansivo de maneira aterradora”.
Além das críticas de todos os lados sobre a falta de ética e a banalização da violência em “The act of killing”, estou de acordo com o produtor Errol Morris quando diz que: “seja documentário lá o que for, não é educação para adultos. Supõe-se que seja uma forma de arte em que tentamos comunicar alguma coisa sobre o mundo real.” E nesse sentindo o doc de Joshua tem mérito, é um filme poderoso. “O filme tem um âmbito e um calibre tão enormes que seria danoso se só enxergássemos a questão política nele. E é muito, muito, muito mais. A forma da narrativa, os silêncios, a música… O fazer do filme… O fazer do filme é excelente.” No fim das contas se deixarmos de lado todos os questionamentos, se é real ou não, se é ético ou não e pararmos para pensar apenas na experiência do cinema, temos em The act of killing “um momento incrível”, conclui Morris.


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