Por ordem cronológica, o
segundo documentário que irei trabalhar, possivelmente, na minha tese é “S21, A Máquina de Morte do Khmer
Vermelho” (2003), de Rithy Pahn. Sob o regime totalitário do Khmer Vermelho, entre 1974 e
1979, milhares de pessoas foram aprisionadas, torturadas e executadas no centro
de detenção S21, no Camboja. Foram necessários mais de dois anos de investigação
para o diretor encontrar os raros sobreviventes e então convencê-los a se confrontarem
no antigo S21, convertido em museu do genocídio.
A primeira coisa que me
interessa refletir sobre o doc S21 é a motivação do diretor. O cinema de uma
forma geral, possui grande parte dos seus melhores diretores envolvidos com um
tema em particular e isso é o que geralmente move suas realizações artísticas,
arte é expressão. No caso do documentário, vemos isso claramente em diversos
diretores como Naomi Kawase, Johan Van der Keuken, Claude Lanzmann, entre
outros. Eles fazem dos seus filmes verdadeiras buscar por respostas em suas
vidas.
A direção de fotografia,
sobretudo os movimentos de câmera de S21 são impressionantes. Desde o princípio já
imaginamos que uma dessas câmeras estava sendo operada pelo diretor e de fato
foi. Rithy Pahn desliza muito suavemente do personagem que fala para os
documentos, para as imagens dos quadros, de um personagem para o outro e
alcança belos planos sequência.
Como diretor, Pahn sabe os
pontos de corte que lhe interessam nos depoimentos e sempre sai do personagem para
uma imagem ilustrativa quando o mesmo parece concluir algo importante. Essa é
uma diferença gritante com relação ao trabalho de Patino, em “Queridísimos
Verdugos”. O diretor espanhol, por exemplo, trabalha com planos fixos e as
imagens são usadas como inserts para cobrir os cortes nos depoimentos. Em S21
tudo parece mais fluido.
Partindo para a análise de
S21, o documentário começa com letterings sobre a guerra e o golpe de estado de
Khmer Rouge que devastaram o Camboja entre 1975 e 1979. Vemos vídeos antigos e
depois chegamos ao presente passando de uma imagem antiga de cambojanos
trabalhando na lavoura para uma imagem atual, essa sim captada por Rithy Pahn,
com cambojanos numa plantação. A intenção do diretor é simples e direta,
contextualizar o espectador da história desse povo e mostrar como a vida segue
nos dias de hoje e assim segue o documentário.
O doc começa mesmo na casa
de um ex-funcionário do Regime de Rouge. Em 5´ de duração, sua família começa a
contar que ele não teve culpa dos crimes e falam em rezar para afastar o karma
ruim. O ex-torturador se mostra desconfortável em falar do assunto,
envergonhado, diz que não dorme, não come... Interessante que isso também
acontece com um dos personagens em “The act of killing”, mas depois
trabalharemos este outro documentário. Abrir S21 dessa forma nos leva a
refletir, logo a princípio, que não existem culpados nessa triste história, são
todos vítimas, mesmo os torturadores.
Então o filme se torna um
pouco mais lúdico, num belo plano sequência em que vemos uma pintura de
cambojanos presos sendo conduzidos ao S21 realizada por um sobrevivente
enquanto ele mesmo descreve o sofrimento que passou quando foi detido e
encaminhado para a casa de detenção. Ele conta que só não morreu porque os
líderes dali gostavam da sua arte.
Em seguida vemos outro
sobrevivente diante do prédio S21 a chorar recordando os fatos. Então os dois
entram e começam a ver um livro com as declarações dos torturados. O diretor
segue sem intervir, parece neutro em meio a tanta dor, deixa que os personagens
dialoguem e conduzam a conversa e o conteúdo. O sobrevivente pintor começa a
questionar o outro sobrevivente por ter delatado cerca de 60 pessoas depois de
ter sido violentamente torturado.
A tensão do confronto
começa a ganhar força no documentário. Se cria uma situação que não poderíamos
imaginar: um sobrevivente que acaba de chorar por ter perdido sua família é
questionado diretamente por outro sobre o por quê de entregar tantas pessoas:
“E se vc tivesse entregado 4 ou 5 nomes?”, pergunta. “Isto não funcionava”,
responde o outro constrangido. Mais uma vez o filme pergunta: existe culpado e
vítima nessa história? E segue perguntando até o fim...
Em 17´, a “vítima também
culpada” diz que lembra das pessoas que entregou e pede aos deuses que não o
castigue com um mal karma. Por um segundo quando ele falou que pedia aos
deuses, pensei que ele iria dizer que pedia aos deuses para que não tivessem
sofrido tanto e que estivessem em paz, mas isso é um pensamento religioso
demais, não? O sobrevivente pede para não ter um mal karma!!!
A situação é tão extrema
que mesmo sobrevivendo essas pessoas seguem sofrendo de medo, arrependimento,
saudade... Chegamos a pensar que quem morreu está melhor do que quem está
vivo... Lá vem minha mente cristã atuando outra vez... E o pintor conclui de
maneira muito coerente dizendo se cada pessoa denunciasse cerca de 50 pessoas,
em um ou dois anos todos os habitantes do Camboja seriam inimigos e
consequentemente, mortos.
Em 25´ aparecem os antigos torturadores
que trabalharam em S21 e o doc muda o ponto de vista. O pintor se encontra com
eles e pergunta: “(vcs) se consideram vítimas?” E um dos personagens
timidamente responde: “somos todos vítimas, sem exceção.” Nesse momento
percebemos mais claramente que o pintor está substituindo o papel do diretor,
assumindo a condução das conversas e provocando realmente os assuntos. Sentimos
isso pois esse encontro soa artificial, todos estão aí um tanto constrangidos,
olham para câmera, se perde um pouco a naturalidade. Entretanto o sobrevivente
pintor de fato agarrou essa oportunidade com unhas e dentes e parece ter
colocado para fora uma vontade antiga de fazer essas perguntas. Rithy Pahn
agradece.
E a coisa se põe mais
interessante. Os torturadores se defendem, dizem que eram ameaçados de morte e
o pintor começa a contar, através de uma de suas obras, a tortura em que viviam
e que eram mal-tratados, violentados, que não comiam. E pergunta: “Por que
tanta selvageria?” Ou seja, esses torturadores se justificam mas por que
incorporavam tão vorazmente seus papéis e agiam dessa maneira?
Em 35´, vemos a primeira
simulação, de como recolhiam um detento para tortura. Eles simulam e estão
sempre lendo as orientações que tinham escritas em documentos. Essa estratégia
de ler os escritos traz veracidade às cenas, eles não estão contando como era
de acordo com o que lembram ou pensam, estão lendo, o que outra vez mostra que
não tinham muito poder de modificar as coisas, tudo estava sob muita orientação
e controle. O doc se desenrola de forma muito envolvente, somos mais uma vez,
assim como nos sentimos em “Queridísimos Verdugos”, de Patino, os juízes dessa
história.
Então assistimos o primeiro
torturador a confessar que realmente era arrogante e que desfrutava do poder
que tinha sobre o “inimigo”, que não refletia. E assume, depois que tinham as
confissões, matavam todos. Esse é um momento interessante. Será que a
experiência de participar do documentário fez estes personagens refletirem mais
sobre suas vidas e de repente mudarem de opinião sobre si mesmos? Isso vemos
acontecer claramente em “The act of Killing.”
Enfim, a primeira sensação
que tenho quando vejo diretores de documentários levarem de volta ao local da
fatalidade sobreviventes de qualquer situação, assim como aconteceu em S21, me
pergunto: que espécie de sádico é esse diretor? Mas entendemos ao longo do filme,
a importância de documentar e fazer essas histórias serem vistas e eternizadas.
Os personagens acabam vivenciando um processo diria até terapêutico quando
revivem os momentos sofridos e acabam por enterrá-los ali, durante as gravações.
Assim esperamos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário