quarta-feira, 20 de novembro de 2013

S21 (2003), de Rithy Pahn



Por ordem cronológica, o segundo documentário que irei trabalhar, possivelmente, na minha tese é “S21, A Máquina de Morte do Khmer Vermelho” (2003), de Rithy Pahn. Sob o regime totalitário do Khmer Vermelho, entre 1974 e 1979, milhares de pessoas foram aprisionadas, torturadas e executadas no centro de detenção S21, no Camboja. Foram necessários mais de dois anos de investigação para o diretor encontrar os raros sobreviventes e então convencê-los a se confrontarem no antigo S21, convertido em museu do genocídio.


A primeira coisa que me interessa refletir sobre o doc S21 é a motivação do diretor. O cinema de uma forma geral, possui grande parte dos seus melhores diretores envolvidos com um tema em particular e isso é o que geralmente move suas realizações artísticas, arte é expressão. No caso do documentário, vemos isso claramente em diversos diretores como Naomi Kawase, Johan Van der Keuken, Claude Lanzmann, entre outros. Eles fazem dos seus filmes verdadeiras buscar por respostas em suas vidas.

Com Rithy Pahn não foi diferente. Nasceu no Camboja, em 1964. Ele foi levado para um campo de trabalhos forçados pelo Khmer Vermelho aos 15 anos, mas conseguiu fugir e buscou asilo na França, onde estudou cinema no IDHEC, iniciando então uma carreira como documentarista trabalhando temas sobre o Camboja, tendo S21 como uma de sua sobras mais importantes.
A direção de fotografia, sobretudo os movimentos de câmera de S21  são impressionantes. Desde o princípio já imaginamos que uma dessas câmeras estava sendo operada pelo diretor e de fato foi. Rithy Pahn desliza muito suavemente do personagem que fala para os documentos, para as imagens dos quadros, de um personagem para o outro e alcança belos planos sequência.
Como diretor, Pahn sabe os pontos de corte que lhe interessam nos depoimentos e sempre sai do personagem para uma imagem ilustrativa quando o mesmo parece concluir algo importante. Essa é uma diferença gritante com relação ao trabalho de Patino, em “Queridísimos Verdugos”. O diretor espanhol, por exemplo, trabalha com planos fixos e as imagens são usadas como inserts para cobrir os cortes nos depoimentos. Em S21 tudo parece mais fluido.
Partindo para a análise de S21, o documentário começa com letterings sobre a guerra e o golpe de estado de Khmer Rouge que devastaram o Camboja entre 1975 e 1979. Vemos vídeos antigos e depois chegamos ao presente passando de uma imagem antiga de cambojanos trabalhando na lavoura para uma imagem atual, essa sim captada por Rithy Pahn, com cambojanos numa plantação. A intenção do diretor é simples e direta, contextualizar o espectador da história desse povo e mostrar como a vida segue nos dias de hoje e assim segue o documentário.
O doc começa mesmo na casa de um ex-funcionário do Regime de Rouge. Em 5´ de duração, sua família começa a contar que ele não teve culpa dos crimes e falam em rezar para afastar o karma ruim. O ex-torturador se mostra desconfortável em falar do assunto, envergonhado, diz que não dorme, não come... Interessante que isso também acontece com um dos personagens em “The act of killing”, mas depois trabalharemos este outro documentário. Abrir S21 dessa forma nos leva a refletir, logo a princípio, que não existem culpados nessa triste história, são todos vítimas, mesmo os torturadores.
Então o filme se torna um pouco mais lúdico, num belo plano sequência em que vemos uma pintura de cambojanos presos sendo conduzidos ao S21 realizada por um sobrevivente enquanto ele mesmo descreve o sofrimento que passou quando foi detido e encaminhado para a casa de detenção. Ele conta que só não morreu porque os líderes dali gostavam da sua arte.
Em seguida vemos outro sobrevivente diante do prédio S21 a chorar recordando os fatos. Então os dois entram e começam a ver um livro com as declarações dos torturados. O diretor segue sem intervir, parece neutro em meio a tanta dor, deixa que os personagens dialoguem e conduzam a conversa e o conteúdo. O sobrevivente pintor começa a questionar o outro sobrevivente por ter delatado cerca de 60 pessoas depois de ter sido violentamente torturado.
A tensão do confronto começa a ganhar força no documentário. Se cria uma situação que não poderíamos imaginar: um sobrevivente que acaba de chorar por ter perdido sua família é questionado diretamente por outro sobre o por quê de entregar tantas pessoas: “E se vc tivesse entregado 4 ou 5 nomes?”, pergunta. “Isto não funcionava”, responde o outro constrangido. Mais uma vez o filme pergunta: existe culpado e vítima nessa história? E segue perguntando até o fim...
Em 17´, a “vítima também culpada” diz que lembra das pessoas que entregou e pede aos deuses que não o castigue com um mal karma. Por um segundo quando ele falou que pedia aos deuses, pensei que ele iria dizer que pedia aos deuses para que não tivessem sofrido tanto e que estivessem em paz, mas isso é um pensamento religioso demais, não? O sobrevivente pede para não ter um mal karma!!!
A situação é tão extrema que mesmo sobrevivendo essas pessoas seguem sofrendo de medo, arrependimento, saudade... Chegamos a pensar que quem morreu está melhor do que quem está vivo... Lá vem minha mente cristã atuando outra vez... E o pintor conclui de maneira muito coerente dizendo se cada pessoa denunciasse cerca de 50 pessoas, em um ou dois anos todos os habitantes do Camboja seriam inimigos e consequentemente, mortos.

Em 25´ aparecem os antigos torturadores que trabalharam em S21 e o doc muda o ponto de vista. O pintor se encontra com eles e pergunta: “(vcs) se consideram vítimas?” E um dos personagens timidamente responde: “somos todos vítimas, sem exceção.” Nesse momento percebemos mais claramente que o pintor está substituindo o papel do diretor, assumindo a condução das conversas e provocando realmente os assuntos. Sentimos isso pois esse encontro soa artificial, todos estão aí um tanto constrangidos, olham para câmera, se perde um pouco a naturalidade. Entretanto o sobrevivente pintor de fato agarrou essa oportunidade com unhas e dentes e parece ter colocado para fora uma vontade antiga de fazer essas perguntas. Rithy Pahn agradece.
E a coisa se põe mais interessante. Os torturadores se defendem, dizem que eram ameaçados de morte e o pintor começa a contar, através de uma de suas obras, a tortura em que viviam e que eram mal-tratados, violentados, que não comiam. E pergunta: “Por que tanta selvageria?” Ou seja, esses torturadores se justificam mas por que incorporavam tão vorazmente seus papéis e agiam dessa maneira?

Em 35´, vemos a primeira simulação, de como recolhiam um detento para tortura. Eles simulam e estão sempre lendo as orientações que tinham escritas em documentos. Essa estratégia de ler os escritos traz veracidade às cenas, eles não estão contando como era de acordo com o que lembram ou pensam, estão lendo, o que outra vez mostra que não tinham muito poder de modificar as coisas, tudo estava sob muita orientação e controle. O doc se desenrola de forma muito envolvente, somos mais uma vez, assim como nos sentimos em “Queridísimos Verdugos”, de Patino, os juízes dessa história.

Então assistimos o primeiro torturador a confessar que realmente era arrogante e que desfrutava do poder que tinha sobre o “inimigo”, que não refletia. E assume, depois que tinham as confissões, matavam todos. Esse é um momento interessante. Será que a experiência de participar do documentário fez estes personagens refletirem mais sobre suas vidas e de repente mudarem de opinião sobre si mesmos? Isso vemos acontecer claramente em “The act of Killing.”
Enfim, a primeira sensação que tenho quando vejo diretores de documentários levarem de volta ao local da fatalidade sobreviventes de qualquer situação, assim como aconteceu em S21, me pergunto: que espécie de sádico é esse diretor? Mas entendemos ao longo do filme, a importância de documentar e fazer essas histórias serem vistas e eternizadas. Os personagens acabam vivenciando um processo diria até terapêutico quando revivem os momentos sofridos e acabam por enterrá-los ali, durante as gravações. Assim esperamos.

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